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sábado, dezembro 27, 2025

Quando o jornalismo desaprende a falar, a democracia começa a gaguejar

Da gafe linguística à ignorância política, o erro que parece pequeno ajuda a normalizar discursos perigosos no jornalismo brasileiro

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Há um tipo particular de analfabetismo que não se resolve com cartilha, supletivo nem cursinho online. Não adianta insistir. É o analfabetismo político-midiático — aquele que não se manifesta na falta de letras, mas na ausência de contexto, rigor e, sobretudo, responsabilidade. Nem vale perder tempo com o chamado jornalismo dos grotões — como o de Dourados, eu escrevi “jornalismo?” — porque, depois da peneira, sobra pouco mais que eco e improviso. O problema que merece atenção está mais acima, na grande imprensa, talvez agravado pela chegada da IA, mas exibido com notável desenvoltura nos estúdios da Rede Globo.

Tudo bem que repórteres, no calor do “ao vivo”, sejam useiros e vezeiros em cometer tropeços gramaticais. Concordância que escapa, verbo que manca, frase que sai antes do cérebro terminar o raciocínio. Faz parte do espetáculo. Jornal Nacional não é banca de concurso público. A língua portuguesa, coitada, que se vire depois.

Mas há erros que vão além da gramática. Há deslizes que revelam ignorância sobre o próprio assunto que se está noticiando. E aí o problema já não é de língua — é de formação política mesmo.

Ontem, no Jornal das Seis da GloboNews, diretamente de Brasília — o que torna tudo ainda mais grave — a repórter Raquel Porto Alegre resolveu inovar no idioma e no direito eleitoral ao mesmo tempo. Ao comentar a saída de cerca de vinte ministros do governo Lula, que devem disputar as próximas eleições, lançou ao vento um sonoro e criativo “descompatiblizando”. Assim mesmo, sem cerimônia, sem constrangimento, sem piedade.

Confesso que, num primeiro momento, pensei: deve ser língua presa, interferência no áudio, ou culpa do meu ouvido cansado. Mas não. Ao final da longa análise, lá veio ela novamente, firme e convicta, com outro “descompatibilizando” — agora já elevado à categoria de tese.

A âncora, Natuza Neri, sentiu. O constrangimento atravessou a tela. Fernando Gabeira foi o primeiro a comentar o assunto e, com a elegância de quem percebe o tropeço alheio, preferiu usar “afastamento do cargo”. Gerson Camarotti seguiu pelo mesmo caminho. Nenhum deles quis passar recibo. Quando o erro é grande demais, o silêncio técnico costuma ser a forma mais educada de correção.

Até aí, vá lá. O verbo desincompatibilizar-se não é exatamente o mais popular do vocabulário nacional. Muitos políticos, inclusive, parecem nem gostar de conjugar o termo — tamanho é o apego ao cargo. Talvez, para alguns, o problema não seja linguístico, mas afetivo.

A gafe, porém, ganha outro patamar quando sai do terreno do tropeço verbal e entra no da irresponsabilidade jornalística. Aí já não estamos falando de “ao vivo”, mas de texto pensado, escrito, editado e publicado.

Refiro-me à colega e respeitada colunista Malu Gaspar, também da GloboNews, que em texto publicado esta semana em O Globo resolveu lançar suspeição sobre o ministro Alexandre de Moraes no chamado “caso Master”. Um assunto grave, com potencial de repercussão nacional, institucional e internacional. Daqueles que exigem apuração sólida, fonte identificável, pé no chão.

Mas não. Em vez disso, o leitor foi presenteado com a velha fórmula do jornalismo de cochicho: “alguém bem informado contou à colunista”. Em seguida, outra pérola: “uma fonte garantiu”. Garantiu o quê? Para quem? Em troca de quê? Mistério. Parece até conversa de balcão na padaria do fuxico, aqui em Dourados, entre um café requentado e uma cueca pendurada no varal da maledicência.

Quando a maior rede de comunicação do país passa a tratar assuntos institucionais graves com o mesmo rigor de fofoca de esquina, algo está muito errado. Não é apenas erro de verbo. É erro de bússola. É jornalismo tropeçando na própria importância.

No fim das contas, talvez o problema não seja descompatibilizar, incompatibilizar ou seja lá que verbo inventem amanhã. O problema é que, em certos momentos, parte da grande mídia parece ter se “descompatibilizado” da responsabilidade democrática.

No fim das contas, talvez o problema não seja descompatibilizar, incompatibilizar ou seja lá que verbo inventem amanhã. O problema é outro, mais silencioso e mais grave. É que, em certos momentos, parte da grande mídia parece ter se descompatibilizado do próprio sentido do que faz. E quando isso acontece na poderosa Vênus Platinada, com toda a sua liturgia, seus estúdios impecáveis e sua aura de referência nacional, resta pouco espaço para ilusões.

Porque se o analfabetismo político — e às vezes linguístico — já se insinua no coração da imprensa brasileira, o que esperar então dos grotões, das paróquias comunicacionais, das terras de seu Marcelino Pires? Lugares onde quase ninguém ouviu falar, por exemplo, de uma Glorinha Beuttenmüller, a mulher que ensinou gerações a respeitar a palavra antes de soltá-la no ar; onde poeta Weimar Torres insiste em ser chamado de Wermar; onde aeroporto vira aereoporto sem que ninguém corrija, sem que ninguém se importe.

Se uma Raquel Porto Alegre anda se “descompatibilizando” do jornalismo em rede nacional, talvez seja hora de algumas vozes de taquara rachada do rádio guaicurus entenderem que microfone não é salvo-conduto para a ignorância. Que opinião não dispensa estudo. Que falar mal não é falar livremente. Porque erro de pronúncia até se perdoa. Já o erro de compreensão — esse vai criando raízes.

Ah, meu amigo Antônio Tonanni, qualquer dia desses você rompe a catatumba e volta para a refrega geral, só para lembrar que jornalismo não é berrar convicções, mas organizar o mundo com palavras. Do jeito que vai, o jornalismo bolsonarizado de certas rádios — inclusive da sua tão amada Grande FM — anda precisando menos de garganta e mais de consciência. Menos improviso e mais leitura.

No fundo, o analfabetismo político não grita. Ele ecoa. E ecoa justamente onde a palavra deveria ser tratada com respeito. Quando isso se perde, não é só o verbo que sai errado. É a democracia que começa a ser pronunciada com erro.

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