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sexta-feira, abril 26, 2024

Bolsonaro reescreveu 1964

Para ele, 'foi tudo de acordo com a Constituição'

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Na segunda-feira, o presidente Jair Bolsonaro deu uma longa entrevista a Igor Coelho, o Igor 3K do podcast Flow. Durou mais de cinco horas, coisa inédita da história de Pindorama. Bolsonaro falou bem de si e de seu governo. Aos 28 minutos da conversa, apresentou sua visão da história e disse o seguinte:

“Quem cassou João Goulart não foram os militares, foi o Congresso Nacional. O Congresso, numa sessão de 2 de abril de 64, cassou. Dia 11 o Congresso votou no marechal Castello Branco, dia 15 ele assumiu. (…) Não houve um pé na porta. Os golpes se dão com pé na porta, com fuzilamento, com paredão. Foi tudo de acordo com a Constituição de 47, ou 1946. Foi tudo de acordo. Nada fora dessa área.”

Presidente dizendo impropriedades faz parte da vida. Lula já disse que Napoleão foi à China e que Oswaldo Cruz criou uma vacina para a febre amarela. Nenhuma das duas coisas aconteceu, mas a batatada não fez mal a ninguém. Já a ideia de que a deposição de João Goulart foi coisa do Congresso e que “foi tudo de acordo com a Constituição de 1947, ou 1946” é tóxica por três motivos.

Primeiro, porque em 2022 Bolsonaro desafia o Judiciário e coloca em dúvida o sistema de coleta e totalização dos votos da eleição vindoura. (O pedido de registro de sua candidatura está no TSE. A decisão só sairá depois de 7 de setembro.)

Segundo, porque em quatro anos de governo o presidente disse em diversas ocasiões que tinha ao seu lado “meu Exército” e ameaçou descumprir decisões da Justiça.

Finalmente, porque Bolsonaro não é a única pessoa convencida de que em 1964 o presidente João Goulart foi deposto pelo Congresso.

• 30 e 31 de março de 1964
Um país que não conhece sua história corre o risco de repeti-la. A maioria dos brasileiros de 2022 não havia nascido em 1964. Passaram-se 58 anos, mas os fatos continuam no mesmo lugar.

Vale a pena revisitá-los, cronologicamente:

Na manhã de 30 de março de 1964, o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, recebeu o briefing diário da Central Intelligence Agency informando que havia uma “possibilidade real de confronto entre Goulart e seus adversários”. O descontentamento militar havia crescido e pelo menos um governador “considerava a possibilidade de uma secessão”.

À noite, Goulart discursou numa assembleia de sargentos, no Rio de Janeiro. Quando ele terminou, o general Olympio Mourão Filho, em Juiz de Fora, registraria:

“Acendi meu cachimbo e pensei comigo mesmo que dentro de três horas eu iria revoltar a 4ª Região Militar e a 4ª Divisão de Infantaria. (…) ‘São 3h15 da manhã histórica de 31 de março, terça-feira de 1964. (…) Vou partir para a luta às 5h, dentro de uma hora e 45 minutos. (…) Sei que morro, mas vou continuar a fumar como um turco. Estou cachimbando sem parar desde as duas da madrugada.”

Mourão proclamou-se rebelado, mas sua tropa continuou em Juiz de Fora. Deu inúmeros telefonemas, almoçou e dormiu a sesta.

Durante a manhã do dia 31, o general Castello Branco, chefe do Estado Maior do Exército, tentou dissuadir Mourão e o governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, que acompanhara a rebelião.

Pelos planos de Mourão, as tropas rebeldes seriam comandadas por seu colega Antonio Carlos Muricy. Ele vivia no Rio, foi acordado às sete da manhã e chegou a Juiz de Fora no início da tarde. Conhecido pelo desassombro, ele contaria: “Eu vivi 1930 e 1932 e sabia como são os indecisos. Nessa hora de indecisão, você pode fazer o diabo e quanto mais diabo fizer, melhor.”

• 1º de abril de 1964
João Goulart havia estimulado a indisciplina militar tolerando uma rebelião de marinheiros e discursando para sargentos. Supunha-se apoiado por um dispositivo de generais palacianos e acreditou que os indecisos defenderiam seu governo em nome da disciplina. Enganou-se.

O marechal Cordeiro de Farias, patriarca de todas as revoluções do século 20, definiu magistralmente a situação: “O Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º.”

Entre a manhã de 31 de março e a tarde de 1º de abril, o dispositivo militar de Goulart esfarelou-se, sem um só tiro. Ele foi do Rio para Brasília e de lá para Porto Alegre.

• O 2 de abril de Bolsonaro
Chega-se assim ao momento em que, segundo Bolsonaro, “quem tornou vaga a cadeira do João Goulart foi o Congresso Nacional”: “Foi tudo de acordo com a Constituição de 47, ou 1946. Foi tudo de acordo. Nada fora dessa área.”

Tudo errado. Na madrugada de 2 de abril o Congresso não decidiu coisa nenhuma. Seu presidente, o senador Auro de Moura Andrade, disse o seguinte: “Comunico ao Congresso Nacional que o sr. João Goulart deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a nação é conhecedora, o governo da República.” Em seguida, foi lido um ofício do chefe da Casa Civil informando-o de que, para se preservar do “esbulho”, seguira para o Rio Grande do Sul, “onde se encontra à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício de seus poderes constitucionais”.

Auro prosseguiu: “Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado. (…) Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República e, nos termos do art. 79 da Constituição declaro presidente da República o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. A sessão se encerra.”

(Do plenário, o deputado Tancredo Neves acusava: “Canalha, canalha!)

Não houve debate, muito menos voto.

No meio da madrugada, uma pequena comitiva dirigiu-se ao Palácio do Planalto e lá o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Álvaro Ribeiro da Costa, deu posse ao presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzilli. Pela Constituição, seria o legítimo sucessor de Goulart, se ele tivesse abandonado o país ou se o Congresso tivesse votado seu impedimento.

Não houve pé na porta porque elas estavam abertas. No Rio, duas horas antes da fala de Auro, o general Arthur da Costa e Silva havia assumido na marra as funções de “comandante em chefe do Exército Nacional”.

Durante essa madrugada, de Washington, o secretário de Estado assistente George Ball mandou um telegrama a Mazzilli felicitando-o. Era o virtual reconhecimento do novo governo. Horas depois ele registraria que o presidente Johnson “ficou furioso comigo, acho que foi a primeira vez que ele ficou realmente zangado comigo”. (O telegrama de Ball sumiu.)

Às 11h, no Rio, o embaixador americano, Lincoln Gordon, festejava o desfecho da crise, mas levantava questões que, passados 58 anos, Bolsonaro julgou ter resolvido.

Gordon escreveu a Washington:

“Estou preocupado com a duvidosa situação jurídica da posse de Mazzilli na Presidência. A declaração da vacância feita pelo presidente do Congresso, senador Moura Andrade, não foi amparada pelo voto dos parlamentares. O presidente do Supremo Tribunal presidiu o juramento de Mazzilli, mas não estava amparado num voto do tribunal.”

Professor de Harvard, Gordon sabia que havia ajudado a atropelar a Constituição.

Elio Gaspari – colunista da Folha de S. Paulo

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