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sexta-feira, abril 19, 2024

Guerra na Ucrânia retoma velha tática de desumanizar imagem do inimigo

Campanhas procuram qualificar adversários como 'ratos' e 'baratas' para aplacar remorso em seus combatentes

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O presidente russo Vladimir Putin diz que a Ucrânia é comandada por “nazistas e viciados em drogas”; ucranianos chamam os russos de “orques”, em referência à raça de criaturas malignas da saga “O Senhor dos Anéis”. Retratar o inimigo como essencialmente desprezível ou menos do que humano é um impulso comum nas guerras modernas, mas o fenômeno provavelmente é tão antigo quanto o surgimento das capacidades cognitivas da nossa espécie.

“A literatura antropológica está recheada de exemplos de tribos que só consideram como plenamente humanos os membros do próprio grupo”, diz Marco Antônio Corrêa Varella, pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Psicologia Experimental da USP.

Isso costuma se refletir inclusive nos nomes usados para designar povos pré-industriais. Em geral, existe um abismo entre o significado desses nomes quando eles são cunhados pelo próprio grupo ou quando são utilizados por tribos vizinhas. Os povos da família linguística tupi-guarani, por exemplo, costumam chamar a si mesmos de “Avá”, palavra cujo significado é simplesmente algo como “pessoa, ser humano”.

Por outro lado, o nome que deram a um grupo étnico de língua jê (não pertencente à família tupi-guarani) é “kayapó” (literalmente, “semelhantes a macacos”). É claro que essa não é a designação que os caiapós escolheram para si mesmos —eles usam o termo “mêbêngokrê”, ou seja, “homens do lugar d’água”.

Coisas muito parecidas também marcam o pensamento de povos europeus desde a Antiguidade. “Para os gregos, os bárbaros são os povos que nem falar sabem, só produzem sons que parecem ‘bar, bar’, sem sentido. O nome dos povos eslavos vem de um termo que significa ‘palavra’, então eles são os que conseguem usar palavras, e os outros não”, lembra Varella.

Num estudo publicado no periódico especializado Frontiers in Psychology, o pesquisador da USP analisou como os seres humanos desenvolveram mecanismos para lidar com outros agentes, ou seja, entidades capazes de ação deliberada.

O primeiro desses mecanismos, que já está presente em crianças muito pequenas e provavelmente é o mais antigo do ponto de vista da evolução cognitiva da nossa espécie, é o usado para lidar com presas, predadores e pragas, e não leva em conta a possível capacidade de outros agentes terem crenças ou intenções próprias.

Já o segundo mecanismo, que se desenvolve mais tarde (a partir dos quatro anos de idade), envolve a chamada teoria da mente, ou seja, a capacidade de inferir intenções, desejos e crenças em outras pessoas ou entidades. Há indícios de que esse mecanismo seja exclusivo da nossa espécie, embora haja vislumbres dele em outros animais de cérebro e comportamento social complexos, como os grandes símios (chimpanzés, gorilas etc.).

“Então, uma forma de desumanizar o inimigo é fazer com que ele seja visto não mais pelas lentes da teoria da mente, mas por meio do mecanismo mais antigo e simples: como uma mera presa que merece ser subjugada, um predador maligno, uma praga asquerosa que precisa ser exterminada por razões sanitárias”, explica ele.

De fato, em dois dos maiores genocídios do século 20, a analogia sanitária teve papel central na propaganda em favor da violência. Na Alemanha nazista dos anos 1930-1940, judeus foram comparados a ratos que precisavam ser exterminados. Já em Ruanda, na África Oriental, durante a guerra civil de 1994, programas de rádio incitavam membros da etnia hutu a “matar as baratas”, referência ao grupo étnico dos tutsis.

Há indícios de que esse tipo de desumanização de inimigos e estranhos tem suas raízes na tendência a desenvolver identidades “tribais” que separam o grupo a que se pertence (“ingroup” ou “grupo interno”, em inglês) dos demais grupos (“outgroups” ou “grupos externos”). A hipótese mais aceita é que esse processo está ligado ao fato de que, durante quase toda a história evolutiva humana, não existia nada semelhante ao Estado e aos sistemas de segurança e Justiça, com policiais, juízes, prisões etc.

Sem instâncias formais para mediar conflitos, a única proteção vinha do pertencimento a um grupo que pudesse defender seus membros de ameaças externas e, se necessário, retaliar ataques. Essa “bagagem” acabaria sendo cooptada também pelos Estados quando eles entravam em confronto com Estados rivais, alimentando conflitos numa escala muito maior.

“Um estudo de 2015 mostrou que, quanto mais as pessoas se identificam com o ‘ingroup’ e o consideram algo importante, mais elas desumanizam o ‘outgroup’. E essa relação é mediada pela distância moral percebida entre ‘nós’ e ‘eles’. Quanto mais as pessoas enxergam o grupo externo como distante delas no que diz respeito à honestidade e confiabilidade, maior a chance de desumanizarem os outros”, diz Varella.

Num conflito armado, o efeito prático desse processo é diminuir o remorso dos que cometem atos violentos e mesmo aumentar as chances de angariar apoio da população civil para atrocidades.

Existiria um caminho para evitar ou minimizar esse processo? A notícia menos pior, segundo o pesquisador da USP, é que a facilidade de desumanizar adversários tem como contraparte a facilidade de humanizá-los, desde que se enfatize os pontos comuns entre todos os seres humanos, da moralidade à vida em família.

“É por isso que, em tempos de guerra, há um intenso controle da propagação de notícias, visando a abafar narrativas contrárias para que a narrativa desumanizadora pareça mais familiar, unânime e convincente.” – Reinaldo José Lopes/Folha de S. Paulo.

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