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quinta-feira, maio 2, 2024

Morte de Navalny evoca legado de opositor, mas mostra poder da máquina de repressão de Putin

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“Não posso contar nenhuma grande história polar, porque ainda não vi nada fora da minha cela. E pela janela só vejo uma cerca, bem perto. Também fui passear. O pátio mais parece outra cela, um pouco maior, com chão coberto de neve”, escreveu Alexei Navalny, talvez o mais conhecido nome da oposição ao presidente Vladimir Putin em seus 24 anos no poder, ao chegar a uma remota colônia penal no ainda mais remoto okrug (região) de Yamalo-Nenets, no final de dezembro de 2023. Nesta sexta-feira, Navalny morreu na prisão, aos 47 anos.

Cumprindo uma pena de 19 anos por extremismo, por quase três semanas não se teve qualquer notícia de seu paradeiro, tampouco se ainda estava vivo. Mas em uma carta, divulgada por seus advogados, usou da ironia que marcou seus discursos para dizer que sim, estava vivo, e relativamente bem, dadas as condições de um dos mais duros presídios do sistema penitenciário russo.

“Como eu sou o Papai Noel, você deve ficar ansioso pelos presentes. Mas eu sou um Papai Noel rigoroso, então só há presentes para quem foi muito travesso”, concluiu a missiva, divulgada perto do Natal.

Navalny jamais se candidatou à Presidência, mas seu ativismo contra o governo e especialmente contra Vladimir Putin e seu círculo próximo causaram incômdo dentro dos muros vermelhos do Kremlin. Em 2012, se juntou a nomes da chamada “nova velha guarda” política, como Boris Nemtsov (assassinado em 2015 em uma ponte sobre o Rio Moscou), para protestar contra o que dizia ser uma eleição fraudulenta. A repressão foi dura, com centenas de prisões — incluindo de Navalny e de Nemtsov —, e seu nome entrou de vez no radar das autoridades.

Putin, alvo principal, jamais usava o nome de Navalny em público: mesmo com a internação do ativista após seu envenenamento por Novichok, em 2020, se referia a ele como “aquele paciente em Berlim”, cidade na Alemanha onde ficou internado até seu derradeiro retorno à Rússia, em janeiro de 2021. Na propaganda estatal, era alvo de constantes ataques: em 2021, a editora-chefe da RT., Margarita Simonyan, comentou uma greve de fome realizada por Navalny na prisão e disse ter enviado a ele um “pacote delicioso” com salsichas e carne defumada. Nesta sexta, após o anúncio da morte, abusou da ironia no X (antigo Twitter), e disse que a “mídia burguesa já começou o luto”, referência à imprensa internacional.

Sem votos, sob pressão da máquina estatal e com fundos cada vez mais restritos, Navalny soube usar as redes sociais como poucos na Rússia de Putin. Atos convocados pela internet pegavam autoridades de surpresa, incluindo após sua prisão, quando multidões se manifestaram diante de tribunais e ruas em várias cidades russas, com dezenas de milhares de presos. Mais recentemente, uma estratégia eleitoral, o “voto inteligente”, na qual apoiadores escolhiam um candidato qualquer que pudesse derrotar o nome governista, resultou em vitórias inesperadas em votações como para a Câmara de Moscou, em 2019, quando a oposição conquistou 20 das 45 cadeiras.

— Vencemos batalhas locais, mas não podemos dizer que somos onipotentes. Há um longo caminho pela frente. Até agora, cerca de 15% a 20% dos candidatos endossados pelo Voto Inteligente ganharam assentos nas legislaturas — disse à Associated Press Leonid Volkov, principal estrategista político de Navalny.

Nas eleições legislativas de 2021, o governo bloqueou o aplicativo, e ordenou que o aplicativo criado pelos aliados do ativista fossem bloqueados pela Apple e pelo Google. Mesmo documentos em nuvens com nomes dos candidatos foram apagados pelas gigantes da tecnologia.

— Nós sabemos, a partir dos resultados de pesquisas independentes, que sua popularidade é mais ou menos a mesma do primeiro-ministro [Mikhail Mishustin] e do prefeito de Moscou [Sergey Sobyanin]. Então ele estava entre os cinco principais políticos da Rússia, mesmo preso e acusado de sérios crimes — disse ao GLOBO o político de oposição Aleksei Miniailo. — Mas é importante notar que a Rússia não é uma democracia eleitoral, e nem sempre as pesquisas mostram o que as pessoas pensam.

Para Miniailo, que conduz um projeto que desde o início da guerra na Ucrânia analisa as opiniões dos russos sobre o conflito, caso houvesse uma eleição livre, e caso Navalny pudesse participar, ele teria chances de vencer Putin.

— Vimos o exemplo da Bielorrússia, onde o ditador ancião [Alexander Lukashenko] perdeu a eleição para uma dona de casa [Sviatlana Tikhanovskaya, mulher do líder oposicionistra Siarhei Tsikhanouski, preso pelo governo] — concluiu.

Repressão

Mas Navalny também foi o retrato mais radical do poder e da capacidade de repressão de Vladimir Putin. Suas repetidas detenções e condenações, além de restrições impostas a ele e sua Fundação Anticorrupção (FBK), considerada uma entidade extremista, impediram uma atuação mais incisiva junto ao público. O envenenamento durante um voo na Sibéria, em 2020, foi considerada mundo afora uma tentativa — mais uma — de assassiná-lo, e mesmo sobrevivendo a uma arma química ele precisou esperar alguns dias até que a transferência para a Alemanha fosse liberada.

Quando decidiu retornar à Rússia, nos primeiros dias de 2021, muitos o questionaram sobre a viagem, e as próprias autoridades o alertaram sobre o que estaria por vir: condições extremas, isolamento, e um possível apagamento de sua imagem. Ao pousar em Moscou, todas as previsões se confirmaram: as condenações se acumulavam, as transferências para regimes cada vez mais duros idem, assim como os problemas de saúde que em vários momentos quase lhe custaram a vida. Em uma carta à jornalista Yevgenia Albats, sua mentora,parecia entender o que havia escolhido.

“Jenia, tudo está bem. A história está acontecendo. A Rússia está passando por isso, e estamos indo em frente. Vamos conseguir (provavelmente). E estou bem, não tenho remorsos. Você também não deveria ter, e não deveria se preocupar. Tudo estará bem. Mesmo que não esteja, teremos o consolo de termos vivido vidas honestas”, escreveu Navalny.

A morte de Navalny ocorreu a cerca de um mês da eleição presidencial , marcada para os dias 15, 16 e 17 de março. Além de Putin, todos os candidatos aprovados pelas autoridades eleitorais são governistas. Para Miniailo, a percepção de que Navalny foi mais uma vítima do Kremlin deve ter o efeito esperado por Putin: o de passar a mensagem de que não há espaço para vozes dissonantes.

— Não acredito que tenha sido uma coincidência. Ele estava perfeitamente saudável há uma semana, e vimos isso em imagens do tribunal — afirmou, sinalizando acreditar na teoria de que Navalny teria sido assassinato, algo compartilhado por aliados do ativista. — Então acredito que tenha sido feito para abalar a esperança, e foi feito exatamente porque os tempos estão muito difíceis para o Kremlin.

Filipe Barini/O Globo

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