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domingo, novembro 24, 2024

Como Dourados conviveu com a “Revolução” de 1964

Dos generais do período "revolucionário", dois eram considerados amigos de Dourados - Ernesto Geisel e João Figueiredo

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Quem ousasse falar em golpe, ia direto pra cadeia. Em lugar da força tarefa do STF e da Polícia Federal, como hoje, sob o comando do ministro Alexandre de Moraes, o algoz dos bolsonaristas, caciques, não os do Jaguapiru, mas os da velha e “marvada” UDN, como era conhecido o partido que deu sustentação à dita “Revolução” de 1964. Entre eles, destacando-se o farmacêutico Arnulpho Fioravante, o fazendeiro Dalmário de Almeida e o chefe dos Correios, Floriano Viegas Machado. Entre os “comunistas” por eles “dedurados” à polícia, os mais notórios, o vereador, depois prefeito, João Totó Câmara, seu guru Harrison de Figueiredo e o vendedor de bilhetes de loterias Walter Baiano. Como a cadeia (hoje quartel do Corpo de Bombeiros) era pequena, os “comunistas” eram conduzidos a pé, escoltados sob baionetas, até celas improvisadas no Sindicato Rural, na Cabeceira Alegre.

Apesar das cicatrizes, conforme o regime ia se distendendo as história do intramuros dos presídios se inseriam no anedotário popular. Como a do dia em que o advogado Harrison de Figueiredo “desapareceu”. Desconfiado de que ele estivesse preso mais uma vez, o lendário Rafael Bianchi, o Faé, deu um chute no traseiro de um policial, para ser preso e, assim, ter a certeza de que o amigo pelo menos estivesse vivo. Por coincidência foi “enjaulado” na mesma cela em que Harrison se encontrava, descascando uma laranja panasia. Do choro inconsolável do ex-vereador Moacir Barreto de Souza, o “Lamparina”, preso no quartel do 11 RC de Ponta Porã, quando caia a noite. Ou a de outro advogado, João Beltran, escondido numa humilde residência, também na Cabeceira Alegre, daquelas em que as “necessidades” eram feitas numa “casinha” no fundo do quintal e, para ir até lá, ele usava um ponche e um gorro na cabeça, para disfarçar, embora fosse apenas o primeiro verão daqueles anos que pareciam intermináveis.

Arredondados os 60 anos, tenho muito clara em minha memória a imagem que seria meu referencial do dia em que foi escrita a página mais triste da história do Brasil. Aos dez anos, precisando pular cedo da cama para fazer café para meus pais antes de ir para a escola Rural Mixta (sic) também na Cabeceira, na rua Maria da Gloria, abro a janela do meu quarto, na casa avarandada em que morávamos na esplanada da serraria Brasil (hoje loja Havan), avistando um caminhão Mercedez Benz estacionado em frente ao escritório dos irmãos Massago. Chamou-me a atenção por ser primeiro a chegar a Dourados, da série 1111L, recém-lançada no Brasil, de cabine semiavançada, que substituía os antigos caras chatas. Verde, mas não o oliva que entraria em cena naquele fatídico 31 de Março, mas o verde da esperança que – eu só viria a saber depois – ali começava a se esvair, prenunciando os tempos tenebrosos que teríamos pelos 21 anos seguintes, em que pese grandes feitos “revolucionários” incluídos num pacote chamado de “milagre brasileiro” por seu autor, o ministro da Fazenda dos militares, professor Delfim Neto.

Menos de um ano antes, em setembro de 1963, garbosamente uniformizados e com bandeirinhas do Brasil à mão, acenávamos para o presidente João Goulart, naquele dia deposto. O “comunista” Jango passou acenando aos colegiais e à população colocada ao longo do trecho entre a rua Coronel Ponciano e o famoso bueiro que existia onde hoje é o Shopping Avenida Center. O jeep sem capota em que ele estava, de pé, ao lado do prefeito Napoleão Francisco de Souza e do deputado federal Rachid Saldanha Derzi, deslizava com dificuldade pela lama da esburacada Avenida Marcelino Pires, ainda em asfalto.

A desculpa da visita de João Goulart era receber o título de cidadão douradense, mas certamente que o presidente estava de olho na Colônia Agrícola Nacional de Dourados (instalada 20 anos antes por Getúlio Vargas) para distribuir terra aos “comunistas” nordestinos, o que certamente já incomodava a caserna revoltosa. Isto numa cidade quatro anos antes administrada por outro “comunista”, conhecido como o pai dos pobres, o prefeito do PTB, do mesmo Getúlio, Vivaldi de Oliveira.

Só dez anos depois, já “formado” em jornalismo pela Folha de Dourados, a “faculdade” de Theodorico Luiz Viegas e já fazendo pós-graduação com Jorge Antônio Salomão, na Rádio Clube de Dourados, comecei a entender o quão tensos foram aqueles ditos “anos de chumbo da ditadura militar”. Na Folha, em 1971, vi Theodorico ser preso por um delegado de polícia, coronel da Polícia Militar, travestido de censor. A causa das porradas entre o meu editor e o delegado, que provocaram a prisão em flagrante, um texto por mim editado e que carecia de melhor avaliação, mas liberado para não atrasar a impressão do jornal, que era semanário. A causa da censura, uma crítica ao governador José Fragelli pela anunciada construção de um presídio em Dourados, quando jornal defendia que a prioridade era a construção de escolas. Foi só minha primeira trombada, entre tantas outras, com a famigerada censura, por todos os veículos em que trabalhei.

Como Dourados conviveu com a “Revolução” de 1964
Presidente da República, general Ernesto Geisel (entre o governador Garcia Neto e a colunista social Ymera Fedrizzi), durante sua segunda visita a Dourados, no Clube Indaiá (foto: Zé Tubaina)

Na Rádio Clube, de tanto segurar microfone para o aí já senador Rachid Saldanha Derzi estufar o peito com suas loas de que nunca existira no Brasil um homem tão preparado para ser presidente da República como Ernesto Geisel, acabei ficando fã daquele general sisudo com quem acabaria tendo uns minutos à sós no gabinete do prefeito João Totó Câmara, em sua primeira visita a Dourados, para o lançamento do Prodegran (Programa de Desenvolvimento da Grande Dourados). Oportunidade surgida após o presidente se “aliviar” no banheiro de Totó enquanto o prefeito organizava o beija-mão na sala de reuniões.

Dos generais e marechais presidentes, o cearense Humberto de Alencar Castelo Branco passou à história como o mais preparado, também o mais temido. Sua morte, em acidente aéreo, até hoje está envolta em mistério, da mesma forma o AVC que matou seu sucessor, o também marechal Arthur da Costa e Silva. Emílio Garrastazu Médici foi considerado o mais sanguinário, mas se passava por bonachão pelo marketing à custa da popularidade da melhor seleção brasileira de futebol de todos os tempos – a de Pelé, Rivelino, Gerson, Tostão & Cia. Além, claro, de Dadá Maravilha, que encerrou a carreira jogando em Dourados, escalado por sugestão do próprio Médici, o que causou a queda do técnico João Saldanha e a ascensão de Zagalo, o técnico do tricampeonato mundial no México. O governo Médici contou também com a inspiração de “artistas”, que criavam peças chauvinistas como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, na mesma linha do “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo”, da dupla Dom e Ravel.

Meu encanto inicial com Geisel (o presidente que criou o Mato Grosso do Sul), num tempo em que, até pela censura, o acesso à informação era precário, foi acabando no decorrer do exercício profissional. Informações que foram sendo liberadas ao público em pílulas, de acordo com a lenta e gradual abertura dos arquivos do período autoritário. Informações, algumas estarrecedoras, como a da semana passada, de seu biógrafo, jornalista Elio Gaspari, de que o general entendia que adversário “tinha que mandar matar mesmo”, o que deslustra ainda mais o currículo do “alemão”, como Geisel também era chamado, mesmo com todos os “méritos” por seu projeto de abertura da democracia, por ele mesmo definida também como lenta e gradual. Projeto que foi concluído por João Batista de Oliveira Figueiredo, o último general presidente, outro “amigo” de Dourados, como definia o prefeito José Elias Moreira. Mesmo tendo consolidado a democracia, Figueiredo acabou nivelado como ditador, como os demais generais. Da mesma forma o antecessor e patrono, muito mais por sua transparência e sinceridade, depois de escancarar que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo. Ou por seu estado depressivo, por tanto tempo trancafiado na Granja do Torto, vítima de uma paixão não correspondida pela primeira-dama Dulce, com quem mantinha o casamento só para atender aos requisitos do protocolo do poder. Uma injustiça com um general tríplice-coroado, cuja promoção ao generalato de quatro estrelas, condição sine qua non para ser presidente, precisou ser antecipada para que pudesse ser oficializado sucessor de Geisel, num tempo em que capitão, ainda mais reformado por insubordinação, não passava nem perto da rampa do Palácio Planalto. Dos males o menor.

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