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sábado, outubro 5, 2024

Como filha de nazista vingou a morte de Che

Livro conta a incrível ligação de alemães, ditadores e guerrilheiros na Bolívia

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[RESUMO] “Surazo” retrata a impressionante história da comunidade nazista formada na Bolívia após a 2ª Guerra e seu entrelaçamento com as turbulências políticas da região nos anos seguintes. Hans Ert, cinegrafista da máquina de propaganda alemã, emigrou para o país andino e lá criou sua filha, Monika, que viria a se tornar guerrilheira de esquerda e assassina do militar que ordenou a morte de Che Guevara.

Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, milhares de ex-oficiais nazistas e simpatizantes do regime migraram para a América Latina. Essa história é bem conhecida por conta da vinda de nomes da alta hierarquia nazi para países como a Argentina (Adolf Eichmann) e o Brasil (Josef Mengele), entre tantos.

Menos conhecida, porém, é a instalação de nazistas de menor projeção ou apenas aliados do regime liderado por Adolf Hitler. Um deles chegou à Bolívia, com a família, e foi viver discretamente na fazenda de La Dolorida, a mil quilômetros de La Paz. Tratava-se de Hans Ertl, cinegrafista e fotógrafo que havia trabalhado na máquina de propaganda alemã. Entre outras coisas, Ertl participou da equipe que realizou filmes de Leni Riefenstahl, incluindo “Olympia” (1938), e documentou os encontros entre o füher e Mussolini.

Na Bolívia, andava apenas na companhia de outros refugiados nazistas, entre eles Klaus Barbie, ex-oficial da Gestapo, conhecido como “O Açougueiro de Lyon”. Considerado um criminoso de guerra, Barbie havia sido condenado à morte na Alemanha pelo fuzilamento de milhares de pessoas e pelo envio de 44 crianças para o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia.

Hans Erlt, embora conectado a essas figuras, permaneceu fora de atividades políticas em território boliviano. Dedicou-se a filmar a natureza e tem obras sobre etnografia ainda hoje consultadas por acadêmicos do país.

Em “Surazo – Hans e Monika Ertl – Uma História Alemã na Bolívia” (ed. Mundaréu), a autora austríaca Karin Harrasser conta a história dos Ertl e dessa comunidade sinistra, assim como o incrível “plot twist” dessa trama.

No meio desse ambiente nazi escondido na Bolívia, cresceu Monika Ertl, uma das três filhas de Hans que chegaram ainda crianças ao país andino. Lá, Monika passou a se comover com causas sociais: a pobreza, os direitos humanos, o racismo e as transformações no ambiente. Também se revoltou com os governos autoritários e brancos do país.

Muito jovem, Monika tornou-se uma guerrilheira de esquerda. Anos depois, entraria para a história como a mulher que vingaria a morte de Che Guevara, matando Roberto Quintanilla, o homem que deu a ordem de assassinar o revolucionário argentino.

“Essa é uma história que precisa ser contada. No cenário internacional atual, em que crescem o autoritarismo e a extrema direita, é preciso conhecer as alternativas de resistência que havia naquela época. Não para usar seus mesmos métodos, como a luta armada, mas para criar consciência”, diz Harrasser.

Como filha de nazista vingou a morte de Che
Cena do filme O “Triunfo da Vontade”, retratando um gigante comício em Nuremberg, na Alemanha nazista (1935) – foto

A Bolívia onde a história se desenrola vivia uma sequência de governos militares, esparsas eleições e mandatos interrompidos por golpes de Estado. Essa situação se manteve entre 1964 e 1982.

Em 2021, o atual presidente da República, Luis Arce, recebeu o primeiro relatório geral da Comissão da Verdade que vinha trabalhando desde 2017. Nele, investigaram-se os abusos contra direitos humanos de 10 presidentes militares (René Barrientos, Alfredo Ovando, Juan José Torres, Hugo Banzer, Juan Pereda, David Padilla, Albero Natusch, Luis García Meza, Celso Torrelio e Guido Vildoso) que comandaram o país no período.

A entidade até aqui levantou mais de 6.800 casos de pessoas vítimas de perseguição, mas ainda é difícil estabelecer a cifra de mortos e desaparecidos, calculados entre 6.000 e 8.000. Foram registrados ainda milhares de casos de violência sexual, expulsões e torturas.

“É muito difícil investigar esse período na Bolívia, todos esses militares foram muito eficientes em destruir a documentação e os vestígios de seus crimes”, conta Harrasser.

Foi no governo de René Barrientos que se deu o mais conhecido delito dos regimes autoritários bolivianos, o assassinato do revolucionário Che Guevara, em La Higuera, em 9 de outubro de 1967. Depois de ser um dos ideólogos e comandantes da Revolução Cubana (1959), Che havia saído pela África e pela América do Sul, com o sonho de exportá-la a outros territórios.

Monika Erlt tinha em Che um de seus maiores ídolos. Foi inspirada em suas ideias que entrou para o ELN (Exército de Libertação Nacional da Bolívia) ou a guerrilha de Ñancahuazú, grupo de inspiração marxista que pegou em armas para tentar derrubar os militares.

“A transformação de Monika em guerrilheira foi um processo turbulento para ela mesma, já que a conexão com seu pai era muito forte. Mas, na medida em que foi crescendo, observando como viviam os camponeses bolivianos e os mineiros chilenos, foi tomando consciência política e dando-se conta do que tinham feito os amigos de seu pai. Os valores de esquerda vão se fortalecendo nela, mas a esquerda de sua época era também uma esquerda violenta”, afirma a pesquisadora.

Como filha de nazista vingou a morte de Che
Foto da família de Che Guevara, no Hotel Sierras, Alto Gracia (Ernesto, à esquerda, aos 8 anos, com o pai, a mãe e irmãs) – ilustração do Livro “Che, uma biografria”, do jornalista americano Joh Lee Anderson

“Foi comum entre vários jovens da idade dela a descoberta paulatina de que eram a primeira geração após os crimes de guerra cometidos pelos pais ou pelos valores nos quais seus pais acreditavam”, diz Harrasser. “É claro que a opção pela resistência armada não era a melhor delas, mas eu hoje entendo porque foi a que ela tomou. Tratava-se de um ambiente de extrema violência em geral”, conclui.

Mesmo estando na Bolívia, Monika passou a ter contato próximo com vários grupos europeus, como militantes italianos e maoístas alemães, até que se radicalizou, abandonou o jovem marido, também filho de imigrantes alemães, e passou à clandestinidade com a guerrilha. A partir desse momento, adotou o pseudônimo de “Imilla”.

Foi por meio das conexões europeias que Monika localizou, em 1971, o paradeiro de Roberto Quintanilla Pereira, que havia sido chefe de inteligência do Exército boliviano quando Che foi preso no interior da Bolívia. Além de dar a ordem para matá-lo, Quintanilla também determinou que suas mãos fossem cortadas.

Após o episódio, Quintanilla foi transferido para Hamburgo, na Alemanha, onde passou a atuar como cônsul da Bolívia. A operação que Monika executaria era extremamente complicada. Toda a logística havia sido preparada em seus mínimos detalhes.

Ela tomou um voo em La Paz com destino à sua Alemanha natal. Chegando lá, comprou uma peruca loira. Pediu, então, uma consulta com o cônsul, apresentando-se como uma australiana que vivia em Hamburgo e queria ter informações sobre turismo na Bolívia, dizendo que pretendia passar férias no então exótico e distante país sul-americano.

O visual era chamativo, e a ideia era, de certo modo, seduzir Quintanilla, conhecido como conquistador barato na Bolívia.

Ele a recebeu em 1º de abril de 1971 de terno e gravata, mostrou-lhe fole falou das belezas de seu país. A conversa entre eles fluiu. A secretária e tradutora de Quintanilla deixou registros do encontro.

De repente, Monika se levantou e retirou da bolsa a pequena pistola que lhe entregaram para a missão. O tempo era pouco, a ação foi rápida, alguns tiros e Quintanilla caiu ao chão. Estava vingada a morte brutal de Che Guevara.

Teria sido o crime perfeito se Monika não tivesse que enfrentar a mulher de Quintanilla, que acabava de entrar no escritório. Na briga, perdeu a peruca, deixou cair a bolsa e a arma, deixou várias evidências.

Quando escapou e conseguiu voar ao Chile, foi aconselhada a não voltar à Bolívia. Porém, já tinha lá sua próxima missão em andamento: sequestrar Klaus Barbie, o amigo de seu pai, conhecido em sua casa como “tio Klaus”.

Animada pelas ações da Mossad, agência de espionagem de Israel, para buscar e levar a julgamento nazistas na Europa, Monika se empenhou na elaboração de uma armadilha para Barbie.

No entanto, o ex-oficial da Gestapo estava mais bem informado que ela, além de ser um importante colaborador do ditador Hugo Banzer, cujo governo era apoiado pelos EUA.

Os serviços secretos bolivianos a emboscam em El Alto, cidade sede de várias organizações sociais e sindicais, na região metropolitana de La Paz, em 1973. Segundo testemunhas, Monika foi fuzilada em plena rua, embora seu corpo nunca tenha sido encontrado.

Hans Ertl, o pai dela, viveu mais 27 anos, reclamando a morte da filha e denunciando os abusos contra ela. Afirmava que Monika tinha sido torturada e violada pelo regime, com o qual, diz, não teria nenhuma ligação.

Segundo Harrasser, Hans fez-se vítima e tentou, o resto de sua vida, afastar-se do rótulo de nazista. No entanto, estava claro que “tudo o que falou e fez antes de morrer havia sido para aliviar sua culpa, era um mentiroso completo”, completa a autora.

Sylvia Colombo Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha de S. Paulo em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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