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quinta-feira, abril 18, 2024

Barricadas, fuzis e silêncio levam a festiva Kiev de volta ao clima da Segunda Guerra

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Tudo foi mudando lentamente. Primeiro vieram as barricadas improvisadas com pneus, pedaços de paus, móveis antigos. Nas ruas vazias, homens vestidos com roupas civis e uma fita amarela amarrada no braço direito apareceram armados com fuzis AK-47. Logo, caixas de papelão cheias de coquetel molotov começaram a surgir nas esquinas, na entrada dos metrôs, nas praças da cidade.

Nos primeiros dias da invasão russa, Kiev dava mostras de que seus moradores, seus governantes, seu Exército não pareciam acreditar que a guerra, uma vez mais, estava próxima dessa que é uma das mais antigas cidades do Leste europeu e berço do primeiro Estado eslávico, o Rus de Kiev.

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Demorou ao menos uma semana para que Kiev se desse conta de que uma invasão russa não se tratava de uma mera possibilidade, mas sim de um evento cada vez mais iminente. A luminosa, limpa, organizada e festiva capital ucraniana começou a perder seu charme. As ruas que ainda mostravam movimento nos primeiros dias da guerra foram esvaziando. As últimas lojas que tentavam se manter abertas fecharam. Na estação de trens, milhares de pessoas aglomeravam-se para deixar a cidade em direção ao Oeste, para mais perto da União Europeia.

Então tudo mudou. Os pneus deram lugar aos sacos de areia. Os móveis velhos e os pedaços de madeira cederam espaço a pesados blocos de concreto. Imensas peças de metal começaram a ser descarregadas por caminhões e guindastes em diferentes pontos da cidade para serem utilizadas como obstáculos à chegada dos tanques russos. Os civis, claramente despreparados e assustados, mas que faziam o papel de vigilantes, se foram. Agora, soldados profissionais, armados com fuzis modernos, controlam os pontos principais de Kiev.

Na Praça da Independência, a Maidan, o ponto mais icônico da capital ucraniana e palco dos protestos que entre 2013 e 2014 levaram à queda do presidente Victor Yakunovich e deram início à crise que agora se transformou em guerra, os jovens vestidos com fantasias de personagens da Disney desapareceram. Postos de controle rígido tomaram o lugar onde até há pouco tempo turistas circulavam com tranquilidade fazendo selfies diante de um letreiro em que se lê “Eu amo a Ucrânia”.

— À noite é tudo mais surreal. Não há ninguém aqui, não há barulho algum, só vento soprando, as luzes das nossas lanternas, está tudo escuro, nunca imaginei que veria Maidan assim, até para nós é algo inacreditável — dizia Victor, um soldado a postos em uma das entradas da Maidan Nezalezhnosti, estação de metrô localizada na Praça da Independência.

Aquela Blitzkrieg

Victor fala inglês bem. Parece bastante jovem. Ele me conta que ouvira muitas histórias de seu bisavô sobre as batalhas travadas em Kiev na Segunda Guerra Mundial. Mas diz jamais imaginar que um dia ele mesmo poderia ser protagonista de algo parecido.

— Estamos no século 21, quem imaginaria isso? Você pensou em algum momento que isso podia mesmo acontecer? — disse ele, me devolvendo a pergunta.

Kiev tem memória fresca da guerra. Em agosto de 1941, os alemães chegaram aqui na sua mais famosa blitzkrieg. Após meses de preparação, Hitler ordenou um ataque total em direção a Moscou no verão daquele ano. Apesar dos avisos da inteligência soviética e inglesa, Josef Stalin não acreditava que Hitler seria capaz de romper o pacto de não agressão assinado entre Alemanha e União Soviética apenas dois anos antes.

Os alemães chegaram rápido. E cercaram centenas de milhares de soldados do Exército Vermelho em Kiev. A batalha começou em 23 de agosto e terminou 33 dias depois, naquela que seria a mais dolorosa derrota dos soviéticos em toda a Segunda Guerra Mundial. Apenas naquele pouco mais de um mês de combate, o Exército Vermelho perdeu algo como 700 mil homens em Kiev, além de quase meio milhar de tanques e um sem número de peças de artilharia.

As pontes que cruzam o Rio Dniéper, que atravessa Kiev, e suas duas margens ainda não foram destruídas como em 1941. Por enquanto, estão quase todas fechadas. Os ucranianos usam tudo que podem para tentar impedir que, quando os tanques russos chegarem até aqui, tenham facilidade para atravessá-las. Ônibus, caminhões, obstáculos de metal impedem a passagem nas principais pontes.

Na quinta-feira, num dia de neve forte, Sasha, um senhor de 62 anos, que me dizia ser professor de química na Universidade de Kiev, demorou mais de uma hora para sair do centro da cidade até sua casa, na margem esquerda do rio.

— Estamos conseguindo atravessar a pé, fui levar comida para minha mãe que mora do outro lado — contava ele, logo após atravessar uma barreira formada por vários ônibus urbanos em um dos acessos à ponte. — É tudo tão inacreditável, parece que estamos voltando no tempo, né? E essa neve, tudo fica mais dramático, nem sei ao certo o que pensar — disse, com um sorriso no rosto.

Bondes como barreiras

Ali perto, já do outro lado do rio, quase no centro da cidade, os bondes deixaram apenas um espaço estreito para os carros passarem. Estão prontos para fechar um acesso importante à área central da capital se as tropas russas estiverem perto.

Um pouco antes, sacos de areia e blocos de concreto faziam uma espécie de casamata sem teto. Estava vazia. Nenhum soldado, nenhum civil armado, nada. Apenas uma bandeira ucraniana tremulava na tarde fria. Como ela, várias estão assim espalhadas pela cidade. Em alguns parques, trincheiras estão sendo cavadas. Pela primeira vez desde o início da guerra, nessa semana houve tanques circulando pela área urbana da capital.

Pouco a pouco, dia a dia, Kiev vai deixando para trás seu passado recente de uma cidade vibrante do século XXI, uma capital do Leste Europeu que nos últimos anos tem tentado arduamente ganhar tons cada vez mais ocidentais. Com a guerra se aproximando, a bela cidade de quase 1.500 anos vai se parecendo mais e mais com aquela Kiev dos anos de guerra. Os prédios ainda estão de pé. Mas as barricadas e as armas já estão nas ruas.

Yan BoechatO Globo

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